O que fazer quando um belo dia acordamos e nada mais está no seu devido lugar e descobrimos que nada mais será como antes, como estávamos acostumados? Foi assim em 1978, quando acordei no dia seguinte à morte do meu pai. Um instante roubado na existência dele foi o suficiente para mudar o resto da minha vida. Ele se foi de súbito, aos 46 anos. Éramos unha e carne, conversávamos muito, me explicava tudo, fazíamos planos, confiava, me tratava de igual para igual. Acho que era a forma dele entender que o filho homem era o Jaime, o sobrinho dez anos mais velho que eu, que vivia grudado nele. Ele não me tratava como uma boneca, mais a filha moleque, que ele incentivava com a bicicleta, com a aula de paraquedismo (que minha mãe ameaçou ir embora de casa se insistíssemos no esporte), dentre outras aventuras que só nós partilhávamos.
Era um tio muito presente na vida dos seus sobrinhos, na vida de todos a sua volta, desde as irmãs, o irmão, a mãe – que também vieram do ES para o Rio -, assim como a irmã mais velha que havia constituído família no Espirito Santo e ficado por lá. Quanto a família de mamãe, bem, ele era O-Genro, O-Marido, O-Amigo, O-Tio. Ele era O-Cara. Ele era o Meu-Pai. Ele era tão bom para fazer a união entre todos que quando partiu, algo também partiu entre as pessoas. Aquela “liga” havia acabado quando retornamos atônitos para casa, após o seu enterro.
Com o tempo, fui entendendo que minha mãe estava perdida no luto, que eu não tinha mais uma voz para me dar o rumo, que vovó seria minha salvação. Aos poucos fui percebendo que os primos mais velhos e muito próximos – Maria, Jaime e Tania, e Sonia – prima do lado da mãe que casou com Jaime -, os protegidos do meu pai, seguiriam suas vidas. Já casados e com filhos pequenos, sem ninguém perceber, o tempo escorreu entre nós.
Também não acompanhei mais as suas vidas de perto, assim como eles não estiveram tão presentes na minha. O tempo passou. Poucos encontros e nenhuma proximidade desde aquele 7 de novembro de 1978, quando nos perdemos sem querer. E nunca mais fui para o Espirito Santo na Páscoa, e nunca mais comi a torta de palmito capixaba que a tia fazia, como não tomei banho de rio com a Ana, o Mazinho e o Wolgo, não conversei com Valter – não vi mais os primos de “lá” -, também não andei pelo mato com os cachorros, ou desbravei o laranjal dos Tios com meu pai que, com uma faquinha pequena, pegava as laranjas do pé e descascava para eu chupar.
Em algum momento a prima Maria foi morar em Portugal, voltou para o Brasil, para Santa Teresa (ES) e há alguns anos esteve no Rio e queria nos ver. Era dia de semana e pedi para levarem mamãe ao encontro dela (e da Tânia). E não consegui me desvencilhar do trabalho para vê-la. Há três anos estive em Vitória a trabalho, peguei telefones, mas não consegui ligar para encontra-la e rever todos os primos irmãos de Maria, que não vejo há exatos 38 anos. Repensando a minha fuga, acho que já fragilizada com o Alzheimer da mamãe, no fundo tinha medo de revirar as lembranças e ter uma crise de choro por lá.
Ano passado, antes de partir, mamãe ficou 15 dias no UTI e pude contar com a presença, o carinho e o apoio de Jaime e Sonia, e da Tania. Há poucos meses resolvi que iria a Vitória rever todos em novembro, mas o feriado da eleição me brindou com a vinda da Maria, que foi capturada da casa da Tania para dormir comigo e com a Tia (ela e a Tia eram muito amigas). Falamos tanto que quase precisamos de senha para ver quem perguntava e quem respondia. Diego foi convocado e veio tomar café da manhã conosco, já que era tão pequenino quando conheceu a prima que quase precisei refazer a árvore genealógica.
Pela manhã, ainda lentas, Maria sentada ao meu lado, Diego e Carol à nossa frente e, de repente, Diego diz: Olha o bico! Era Maria parada com a boca de bico enquanto prestava atenção no que falávamos. Risadas com a semelhança de nossas bocas e gestual, do “fazer bico” que temos igual (e Tania também). Sempre conto que minha mãe reconheceu Diego pelo bico, quando na maternidade, naquela televisão de avós repleto de bercinhos, pediram para ela apontar, às escuras, quem era o neto dela.
Quando Jaime passou alguns dias em nossa companhia, descobriu no Diego algumas coisas que lembravam o tio querido, o avô que meu filho não conheceu. Kelly acha que eu e Tania estamos cada vez mais parecidas e confunde a nossa voz ao telefone. Percebi que Tania gosta de abraço de verdade, como eu, apertadinho, abraço cheio de braços. Maria, ah Maria, foi lindo reencontrá-la após um pouco mais de duas décadas. Descobrir que temos uma veia curiosa e andarilha, que nos leva onde nosso coração pede, que somos parecidas em tantas coisas que não daria para relacionar aqui. Mas quando ela me abraçou nas despedidas, me apertou e falou “minha caçulinha”, aí desabei, claro. Encontrar meu DNA nos meus faz parte de me encontrar cada vez mais, perceber algo neles e dizer: gosto disso em você, e em mim também.
Após votarmos, eu e a Tia fomos devolver Maria na casa de Jaime e Sonia. Minha esperança era que Tania não chegasse para busca-la, mas chegou com a filha Aline e o neto Gabriel. Kelly e Isabelle – filha e neta de Jaime e Sonia -, chegaram logo depois. Tia Dulce, mãe da Sonia, sentadinha em recuperação de uma cirurgia, observava a confusão emocionada. Falávamos todos ao mesmo tempo enquanto Gabriel pulava como uma pipoca.
Pela manhã, amassamos a Maria e fizemos fotos com Diego, Carol e a Tia. À tarde, na confusão do lanche divino, preparado pelos anfitriões Sonia e Jaime, resolvi pedir para a Sonia fazer uma foto minha com os protegidos do Tio Hilton. E, neste momento, todos se olharam e confirmaram que sim, eles sabiam que eram os preferidos do Tio. Nesse momento pensei: voltamos a ser uma família, meu Pai.
Nas fotos: com Maria, Diego, Carol e a Tia; Jaime, eu, Tania e Maria; toda a turma fotografada pela Belle. No ES, com os Tios e os primos (na época, Maria morava no Rio); em anos dstintos, a clássica foto na estrada, a espera do ônibus para Vitória; eu e Ana lavando roupa no rio com os meninos Mazinho e Wogol; papai e os meninos; eu, Ana e Walter.
Rio, 30 de outubro, 2016
Foto: Valter Massi |Santa Leopoldina, ES, Páscoa de 1978