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Visita Ilustre

Estava eu por aqui com a internet sem funcionar por todo o dia, nenhuma notícia do devedor que não me paga e o som do pinga-pinga no balde, nas minhas costas, goteira que insiste em vazar do teto do escritório há quase um ano. Toca a campainha, abro a porta e, finalmente, mais um bombeiro entra com a promessa de tentar findar o vazamento.
Me retiro do recinto, abandono o texto que estava fazendo, os e-mails que estavam todos no rascunho e levo os telefones para a varanda. Quem sabe uma brilhante ideia, uma ligação espetacular para mudar o rumo da conta bancária.
Desisto. Divido o sofá com os cachorros, coloco as duas mãos no rosto em forma de oração e peço. Sinto cheiro de vela e descubro que é a solda no cano e sua junção sendo frita pelo fogo. Fico em silêncio, já que para mim não importa a hora para agradecer ou pedir auxílio e, assim, peço ao Senhor do Universo que não me deixe fraquejar diante das dúvidas, que me mantenha acreditando na fé que salva e no amor que consola.
Saio daquele momento ao ouvir o bombeiro chamar, vou até o local do conserto. Chegando lá, meio sem graça, pergunto seu nome, já que não me lembrava de tê-lo ouvido ou perguntado. E a resposta foi: “Jesus”.
Fiquei muda, falei que ele era, naquele momento, uma visita muito ilustre, que me encontrava falando com o Senhor, que ele voltasse sempre que quisesse para tomar um café e nada de canos pingando, por favor. Creio que ele me achou meio louca, mas não me importei.
Jesus me levou um cheque pré, me prometeu que não havia mais goteira, me brindou com um largo sorriso e isso me encheu o coração de esperança para seguir em frente.
Agradeci pelo trabalho, fechei a porta e pensei em voz alta: hoje Jesus me visitou. Obrigada!
Obs: o conserto ficou 100% e está ok até os dias atuais. Tentei contatar Jesus meses depois para indicar um trabalho, mas nunca mais consegui falar com ele. Algumas situações não precisam ter uma explicação racional.

Recreio, RJ, 22 de abril de 2009.
Foto Silvana Cardoso, Lagoa Rodrigo de Freitas, RJ, 25 de dezembro, 2014.

Coragem e conquistas para ser desnecessária

Como assim, acabou? Pois é moça, acabou a família que você acreditou estar em sólidas bases de amor e confiança. Acabou a parceria moça, as conversas ao jantar, os passeios com os amigos e, assim, a certeza que também acabou a história de amor. Assim, um dia a vida estava fora do eixo, a partir da perda de sonhos em comum. Assim, um dia, sem emprego fixo, sem, sem, sem, sem um pai por perto para ajudar a criar e a educar um filho, sem o parceiro do sexo seguro e amoroso, do Natal e do Ano Novo em festivas comemorações de amor e paz.

A-ca-bou-se-o-que-era-do-ce-meu-bem. E o que sobrou além do filho amado, do cachorro e dos boletos para pagar? Sobrou coragem, cansaço e amor.

Duas décadas e meia depois, olho no espelho e reconheço em mim aquela mãe de 27 anos que optou pelo amor e seguiu sem olhar para trás, que cuidou do menino Diego, aquele pequeno que um dia aparou com a tesoura da casa os cílios e as sobrancelhas, após perceber o distanciamento do pai – a partir da separação e da mudança dele do estado e do país.
A minha história começa assim, como a de muitas e muitas mulheres independentes e empoderadas, para usar o termo do momento, hoje uma nomenclatura que ajuda o feminino a ter mais coragem na luta pelos seus direitos, no coletivo, como foi há cem anos. Entretanto, acredito que estávamos correndo de um lado para o outro na conquista do mundo e o sentimento do coletivo ficou adormecido nos últimos tempos desse último século, neste início de todas as conquistas, na independência da mulher ocidental. Uma tarefa hercúlea e solitária, mas que nos fez chegar até aqui.
Hoje, já no finzinho das comemorações do Dia Internacional da Mulher, relembro mulheres contemporâneas bradando que “na próxima vida quero voltar homem”, independente do credo. Hoje, cem anos daquelas conquistas, percebo um orgulho, uma determinação para novas conquistas, para um novo século de mudanças reais, onde ainda temos muito a fazer para as próximas gerações, independente do gênero. Penso também que podemos dar bonecas para os meninos ninar quando crianças, podemos ensiná-los a plantar uma flor além de ir ao jogo de futebol com o pai, podemos dar uma vassourinha de brinquedo, como fazemos com as meninas, para que possam ajudar nas tarefas domésticas, podemos também ensiná-los a gostar de bebes e crianças enquanto também são crianças, podemos ensinar os valores humanos que estão sendo colocados de lado.
E desejo que todas nós possamos ser desnecessárias para os nossos filhos. Como disse Dalai Lama, “Ao aprendermos a ser “desnecessários”, nos transformamos em porto seguro para quando eles decidirem atracar.” Assim, após as novas conquistas para o novo milênio, desejo também que a mulher-mãe-profissional-independente-dona-do-seu-nariz esteja sentada em seu jardim, menos cansada e empoderada de paz.

Rio de Janeiro, 8 de março de 2018.
Foto, Dia das Mães de 2016, Eu e Diego, pelo olhar amoroso de Susana Ribeiro.

Gratidão e sorte, plantar amigos

O que fazer quando tudo está em crise? E como dar conta da situação atual do mundo, do país, do Rio de Janeiro, do vizinho, do amigo, do parente, daqueles que perambulam abandonados pelas ruas, como as nossas crianças ou mesmo os venezuelanos ou todos os seres abandonados nesta grande diáspora que vivemos? Digo e repito para mim todos os dias “acredita Silvana, acredita”. Por vezes ao menos tenho algo concreto para acreditar, mas acredito. E posso te dizer que dar conta é impossível, mas como dizem os sábios “cante a sua aldeia e cantarás o mundo”. E, assim, tento cantar a minha aldeia, os meus, e percebo que estar fazendo algo pelo outro também ajuda a vislumbrar além do meu próprio umbigo.
Mas é claro que nada é tão simples, que bate uma labirintite, uma falta de apetite, uma vontade danada de dormir, alguém grita que vai deprimir já já. É quando o melhor a fazer é ligar o botão de alerta e aproveitar aquele tempinho que sobra para ajudar na campanha de leite em pó do Inca Voluntários, entrar em um grupo que da suporte, e um ombro amigo, para pessoas que convivem com portadores de Alzheimer, levar o cachorro da amiga para passear ou ajudar outra numa mudança. O que vale é se ocupar e continuar na busca por novas oportunidades, produzir alguma coisa boa, seja o seu trabalho que te paga as contas, seja para ocupar a mente que insiste em dizer que tudo está fora da ordem mundial.
E assim, dentre outras coisas, com um tempinho extra na agenda, voltei a plantar, já comecei a dar mudas de presente aos amigos e busco um curso de jardinagem grátis para fazer em muito breve. Gosto de acordar e ver as florezinhas brotando todos os dias quando o sol chega perto das onze horas da manhã.
Todos os dias percebo mais e mais que ter um tempinho para fazer algo pelo outro é o grande mistério que cabe em nós, no nosso gesto de acolhimento. E hoje agradeço pelos amigos que tenho, pelos amigos dos meus amigos que também tenho comigo, por plantar amigos e acreditar neles, apenas. Sou uma pessoa de sorte. Namastê.

Na foto (de minha autoria), o amigo Shake – Golden do Leon e da Andrea – dorme antes do passeio de domingo, após tentar comer meu tênis. Porque o amor é azulzinho.

O exercício era: escrever uma carta, cujo narrador é um personagem histórico.

Querido Pai,
Trago notícias e venho por meio desta dividir a minha aflição, pois parece que tudo deu errado nos nossos planos. A concepção de uma nova era a ser contada a partir da minha chegada neste planeta azedou de vez e tudo que combinamos fazer por amor ao próximo vem se transformando em ódio ao próximo. Aquelas barbáries cometidas nas arenas da Idade Média agora são transmitidas via satélite. O Senhor sabe o que é um satélite? Se não, deveria se aprimorar, pelo menos em conter o poder que deu aos homens de boa vontade, pois estão se matando sem piedade e em larga escala – via satélite.
A fome e as pestes estão por todo os lados outra vez e a penicilina já não da conta de manter tanta gente viva, assim como a intolerância mata em teu nome, seja lá qual nome querem te nominar. A velocidade para espalhar medo é tão grande que, para te dar uma noção do que estou falando, meus doze amigos e seus seguidores não sobreviveriam por um dia sequer nestas terras que o Pai me deu. Os inventos diminuíram as distâncias entre os continentes mas, com o tempo, descobriram que poderiam dominar as pessoas e assim se fez a colonização dos povos inferiores. E fizeram escravos e a descolonização gerou guerras e mais guerras. Povos foram dizimados, isolados e continuam em busca de paz e comida pós descolonização. São agora reconhecidos como Terceiro Mundo.
Também não tem comida para todos, meu Pai. Tem muita gente por aqui e continuo a vagar por ai, mas já não me reconhecem e, enquanto falo de amor e paz em Teu nome, crianças morrem de fome e o desamor é a palavra de ordem. Cada um por si, Deus por todos, é o lema. Cada um precisa livrar a sua pele e a química veio para salvar, para criar zumbis e, agora chegou a notícia da droga “dos canibais”. Melhor mesmo é uma que anestesia, em larga escala, para livrar o homem da dor do universo tão infinito. Mas o Senhor deve estar sabendo que, além de tudo isso, agora temos a busca do transumano. Serão “imorríveis”, olha que beleza! E quando tudo der errado por suas próprias escolhas, ao menos vão precisar chamar por Teu nome e isso pode ser uma vantagem.
Mas tenho uma questão grave neste nosso projeto para questionar: qual o motivo do Senhor deixar aquele astronauta da Apollo 8, na véspera do meu aniversário de 1968, por um acidente, registrar a imagem da nossa morada planetária? Perdão a palavra, mas não acreditei quando vi aquela bola azul brilhante, que se fez verdade para aquela teoria da era antiga de Pitágoras, o Grego, que diz ser uma esfera onde habitávamos.
Uma vez ouvi de uma sábia senhora que a ignorância é uma dádiva. Pois é, assim somos apenas a Terra, linda, redonda e azulada, nada menor ou maior para dominar. Na verdade somos apenas, e Eu me incluo, já que estou aqui a falar para as pareces, trilhas humanas como formigueiros em busca de comida para sobreviver até a próxima estação – enquanto outras formigas morrem alagadas, na seca, esmagadas, neste mesmo universo criado por Ti.
Perdão a momentânea desesperança, mas preciso confessar que percebo que falhamos.
Mas ainda creio em Deus Pai, Todo Poderoso.
Com amor, seu filho.
Jesus

RJ, Novembro, 2016
Foto: Silvana Cardoso

A mudança, novos ventos

Após uma mudança de endereço, há exatos dez anos, revirei as emoções e escrevi este texto, já que encaixotar lembranças e histórias pode parecer muito dolorido, mas tirar das caixas o que realmente importou levar ah, isso é maravilhoso sentir. Segue o texto:

Conheço pouca gente que morou na mesma casa por toda a vida e até minha avó se mudou após 40 anos no mesmo endereço. Quem nunca passou pela saga de empacotar suas histórias daquele lugar onde se viveu? Comigo foram apenas duas mudanças de  endereço e da última vez a situação revirou as minhas lembranças.
É claro que mudei da nossa-casa-da-vovó quando casei, ainda muito jovem, mas foi diferente, já que naquele momento era a minha vida que estava de mudança. No dia do casamento a imagem que ficou foi a despedida da minha avó no portão, mulher de poucas lágrimas que neste dia chorou ao me abraçar e dizer que ia sentir falta da minha correria pela casa, me desejou felicidades, que estava lá para quando eu quisesse voltar (com minha mãe, um primo-irmão, meu tio mais novo e sua mulher, minha tia querida e minha cadela Kessi, que ficou sob os cuidados do Tio). Duas décadas se passaram daquela despedida e um belo dia minha Tia liga para dizer que “vendemos a nossa casa” e vamos mudar.
Choque número um: como arrumar ou desarrumar uma casa grande que acumulou coisas por 40 anos; choque número dois: preciso comprar uma casa nova para a minha mãe; choque número três: sobrou pra mim, filha-neta-da-casa, ajudar na confusão.
E lá fui eu por semanas seguidas ajudar a organizar a mudança. Nada simples, mas vencemos até as caixas do sótão com as coisas alheias a serem devolvidas, a coleção de vidros e garrafas da vovó, as lembranças e cacarecos do meu pai. E assim fomos embora da casa da minha infância e adolescência e assim sobrou para mim levar as muitas caixas na véspera e o cachorro no dia D. Foi, fomos e sobrevivemos. Doa a quem doer as lembranças estavam ali e sobraram as boas de uma época inocente da minha vida, mas a casa se foi. Demoliram para a construção de um prédio.
Animada com a empreitada, resolvi colocar a minha casa à venda. E daí ter palavras ou termos para explicar o que aconteceu seria mero blá-blá-blá, já que esta casa foi o meu lar, onde construi minha vida adulta e criei meu filho. Comprei o imóvel recém casada, ainda uma quase adolescente de 20 anos, com a tarefa de pagar o imóvel por mais vinte.
Casa vendida, e foi ao arrumar a desarrumação que descobri que parecia a nossa-casa-da-vovó: quanta coisa que eu não via há tempos; outras achadas nos armários da lavanderia; no sótão estava parte da mudança da minha ex-sogra. Não dava para levar tudo e sobrou muita coisa. Fiquei por quase um mês enchendo caixas, vendo onde morar e me despedindo da minha antiga história naquele endereço. Fiquei cansada, muito cansada. Também doeu bem mais que desfazer da nossa-casa-da-vovó, já que ali estava a minha história como mãe-mulher, a minha casinha fofa onde meu filho brincava solto e livre do perigo. Os vizinhos que viveram de perto a minha separação e atenderam aos meus pedidos de ajuda, quando precisava do marido alheio quando o chuveiro queimava a resistência, ou mesmo quando o carro não pegava na hora H de levar Diego para a escola naquela chuvinha das seis e meia da manhã, ou com quem deixar o filho-órfão no fim de semana de trabalho. Ennquanto empacotava as minhas lembranças percebi que todos foram meus heróis.
Poucas horas anates do caminhão encostar no portão “de casa” parecíamos vítimas de uma enchente. Naquele momento me senti sem rumo, sem prumo, cão sem dono. Eu e Diego tivemos uma crise de choro naquela madrugada, nos abraçamos, dormimos juntos no quarto dele. Poucas horas depois não deu tempo de nada e fomos embora daquela casinha que tanto amamos e fomos amados. Foi no dia 11 de setembro de 2007.
Mudanças exigem, acima de tudo, coragem e fé de que vamos dar conta. Sempre falamos em mudar a vida, dar uma mudada, mudar os ares, mudar os problemas e mudar e mudar, mas cansa, e muito. Fiquei esgotada – fisicamente-mentalmente-emocionalmente. Achei que não sobreviveria um mês para contar a história, mas o ser humano sobrevive, somos inventores de nós mesmos, mudamos as peles e vamos em frente. Damos conta, sempre.
Estamos bem na casa nova, construindo novas amizades, ouvindo pássaros cantar, pertinho do mar. Os rapazes, JB e Cisco, passeiam e batizam todas as árvores do bairro novo. Valeu ter coragem para revirar os sentimentos e fechar as caixas.
Encaixotar lembranças e histórias pode parecer muito dolorido, mas tirar das caixas o que realmente importou levar, ah, isso é maravilhoso sentir.

janeiro, 2008
Foto: Silvana Cardoso

 

A nossa fé e a fé no outro

Nem sempre é fácil ter fé no outro diante das inúmeras atrocidades humanas, sejam os atentados da última era do terrorismo que vivemos ou mesmo diante dos políticos do nosso país. Mas a verdade é que ter fé ainda nos salva a ter fé de que algo vai melhorar. Sou cristã e espiritualista de formação familiar, mas descobri que acreditar que tudo dará certo é muito mais difícil que crer no subjetivo.
Um dia ouvi que na Alemanha não era preciso ter fé, pois lá tudo funciona perfeitamente para a população. Imagino que isso facilita acreditar que o ar, a água e o sol é tudo que se precisa para viver em paz, quando segurança, educação, saúde e as lei que protegem o cidadão estão em dia. Mas como acordar sem fé no Brasil? Mesmo que eu estivesse na Alemanha ficaria de lá rezando, mantrando, orando, meditando por vós, por nós e por todo o planeta em declínio.
E hoje foi um dia de fé aqui no bairro, já que 8 de setembro é dia de N.Sra da Penna, santa protetora das artes, das ciências e das letras, padroeira da imprensa, que descobri por causa da Tia. Ninguém da minha aldeia profissional a conhece e isso me faz lembrar daquela brincadeira do novo Zorra (programa da Rede Globo), quando Deus resolve questionar a falta de devotos de um determinado santo. Se “Jacarepaguá é longe pra caramba”, já diz a música, imagina conhecer nossa-senhora-da-pena, que fica na Freguesia, uma igrejinha mínima encrustada lá no topo de uma pedra.
Mas hoje o pátio do lado de fora da igrejinha é coberto especialmente para a data, fica lotado para a missa, que nos últimos anos, neste dia, conta com a celebração de Dom Orani. O evento começava às 11 horas, a fila do teleférico estava imensa e subi a pé todo o “morro”. Cheguei derretida e, por sorte ou fé, tinha uma cadeira vazia bem ali na primeira fila, a minha espera.
Deixo de lado as minhas diferenças com a Igreja Católica Romana (prefiro os Ortodoxos) quando o assunto é Jacarepaguá ou Santo Antônio, e ali estava eu de frente para a imagem. Pensava o quanto era estranho ter uma santa que “tecnicamente” é a protetora de uma classe em maioria de ateus ou agnósticos, mas segui ouvindo Dom Orani Tempesta, o Cardeal Arcebispo da nossa cidade. Ele falou sobre o perdão, sobre dar o primeiro passo em direção ao outro, aceitar o outro, sobre as intolerâncias que estamos presenciando mundo afora.
Fiquei ali olhando aquelas pessoas, olhando todos nós, entre crianças e o Sr. José Augusto, fotógrafo e homem de fé, que usa uma máquina analógica e de joelhos faz as imagens na hora da comunhão. E fiquei ali com aquela energia de amor e paz que me fez pensar o quanto me ajuda ter uma fé inabalável nas energias boas do universo e, acima de tudo, ter fé no outro.

Foto: Silvana Cardoso