Uma honra ter um texto de minha autoria no livro “Como se encontrar na escrita” (Rocco/Bicicleta Amarela), querida Ana Holanda. É muito amor envolvido.
O texto, “O que aprendi ao lavar roupas”, também foi publicado na revista Vida Simples e pode ser lido no pdf das páinas no link: https://passarimcomunicacao.com/2017/03/01/vida-simples-o-que-aprendi-ao-lavar-roupas/
O QUE APERENDI AO LACAR ROUPA
Sonhei com vovó. Sonhei que estávamos conversando e lavando roupa, como antigamente. Aqueles pequenos prazeres em companhia da matriarca da minha família. Acho que meu inconsciente me chamou para retomar aquela história de lavar roupa que comecei a contar há exatos 12 meses, no dia 27 de dezembro de 2015 – naquele dia de calorão de verão como hoje, de sol forte como hoje, de luz intensa como hoje. Lembro que fui interrompida pela pergunta do tio, se eu sabia com quantos anos o pai dele, meu avô, havia morrido. Busquei os documentos e falei: com 42 anos. Jovem, né? Ele me respondeu “eu tinha quatro anos”. Mais tarde, fui interrompida desta vez pela febre alta que ele estava. No dia seguinte perdi o rumo da prosa ao me deparar com a sua morte. Foi triste e não conseguia mais voltar ao texto.
Hoje, exatos 12 meses daquele dia, eu abro o arquivo no computador, apago tudo e, como na vida, recomeço. Olho pela janela e vejo meus lençóis na corda, balançando como naquele dia. Lembro mais uma vez que sou neta de lavadeira, que os ensinamentos de D. Maria da Penha me fortalecem e me ajudam a passar pela vida como neta de lavadeira. Daquela que, após a morte do jovem marido aos 42 anos, criou os cinco filhos menores de idade “lavando roupa pra fora”. Contava suas histórias e apertos enquanto me ensinava como segurar o pedaço da camisa com as duas mãos, os punhos fechados para, num movimento de vai e vem, esfregar o pano em cima do polegar. Tempos difíceis na década de 40, quando tudo que ela sabia fazer se transformou em trabalho para criar os filhos, o menor com quatro anos – o Tio querido que cito acima.
Tenho uma prima que também gosta muito de lavar roupa, como minha mãe também gostava. É hereditário, falamos! Enquanto alguns se divertem com a confissão, sinto um prazer imenso todas as vezes que separo as roupas para lavar – colocar na máquina, esfregar algumas na mão, pendurar nas cordas, esperar secar para “não dormir no sereno”. Costumo fazer isso nos dias que estou bem calma, com tempo, para aproveitar e conversar comigo mesma, até para não espalhar meus pensamentos por ai em voz alta. E quando faço isso, observo os lençóis que balançam ao vento nos fios de cobre e percebo como aqueles movimentos me enchem de alegria, sentimentos que fazem parte da minha infância.
Lavar roupa parece fácil, mas ser lavadeira na década de 40 não era tarefa simples, já que a lavadeira deveria pegar a roupa na casa do cliente, levar para casa, lavar, engomar, passar e entregar tudo limpinho, esticadinho e cheirosinho de volta na casa do freguês, e tudo sem maquina de lavar ou ferro elétrico. Mas a profissão que foi desaparecendo dos grandes centros a partir do aperfeiçoamento do advento da máquina de lavar, no final do Século 17, começou mesmo a perder espaço por aqui no início do Século 20, quando a industrialização chegou a terra brasilis. Mas lavar roupa, contar histórias e cantar à beira do rio ainda pode ser uma cena comum em algumas poucas localidades do Brasil, no interior de Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo.
Dessa tradição, em 1991, nasceu um grupo de cantoras em Minas Gerais, as Lavadeiras de Almenara. Senhoras lavadeiras que às margens do Rio Jequitinhonha fazem seu ofício e entoam as cantigas que aprenderam com suas mães e avós. Cantam para não esquece-las, com o intuito de não deixar a tradição morrer com a profissão, já que através das músicas também contam suas histórias pessoais e de toda uma região do Brasil. E pelas mãos do músico e pesquisador cultural Carlos Farias o grupo de lavadeiras já tem conhecimento em todo o Brasil. Lavadeiras de Almenara também se apresentam em diversos países, como Portugal e Espanha, já gravaram CD e receberam a medalha Ordem do Mérito Cultural em 2010, pelo Ministério da Cultura.
Voltando para os ensinamentos de vovó, minha Maricota, que me ensinava coisas, ela dizia que ajuda de criança e pouco e quem rejeita é louco. E assim, aprendi a cozinhar e a lavar roupa de verdade. Enquanto me ensinava os afazeres domésticos, também me ensinava sobre sentimentos, sobre as pessoas, sobre fazer caridade levando uma água para o padeiro no portão, pequenos gestos do bem, sobre ter um olhar acolhedor para o outro. Ainda hoje, quando vejo minhas roupas branquinhas e limpinhas voando na corda, me lembro da sua sabedoria de gente sábia.
Mas hoje, creio que lavar roupa na mão não seja algo atrativo para a criançada da atualidade, conversar entre família lavando roupa então, extinção completa. Entretanto, vejo que algumas tradições familiares estão sendo resgatadas após gerações de mães culpadas de filhos órfãos. Cozinhar é uma delas. A grande quantidade de programas sobre culinária e o incentivo através deles para que as crianças retornem com seus pais para a cozinha. Mesmo que seja só um apelo para os pequenos saírem da frente da web, para aprender coisas diferentes, quem sabe este seja o pulo do gato para que as nossas jovens famílias retomem a educação através do coração amoroso e sábio da matriarca, do mais velho, do mais sábio.
Hoje, quando estendo minhas roupas penso naqueles ensinamentos à beira do tanque de pedra da nossa casa de vasta calçada, onde colocávamos as roupas para quarar. Ainda me pego estendendo uma toalha de plástico no sol de lascar para esticar uma toalha de banho para ficar bem branquinha, “mas não pode deixar a roupa esturricar, falha gravíssima para uma lavadeira”, dizia vovó. É preciso ficar de olho, ir molhando aos poucos, com uma água rala de sabão dentro de um balde que balança num braço, enquanto o outro parece distribuir alguma coisa ao vento, com movimentos largos para os lados espalha a mistura em cima da roupa já quente como um ovo frito. E, depois dessa movimentação que se estendia por toda a manhã, enquanto o almoço ficava pronto, é preciso recolher tudo e começar o enxague.
Naquela época não se falava em ócio criativo e como todo ensinamento precisa de uma certa prática para ter sucesso, um dia perguntei para vovó como eu ia descobrir que a roupa já não tinha mais sabão, se estava ou não bem enxaguada. Ouvi: minha filha, não precisa gastar toda a água da casa, apenas encosta a roupa na boca e suga a água que ainda está nela. Se tiver sabão, você vai sentir o gosto e enxagua tudo outra vez. Simples assim, Maricota. Obrigada.
E a vida pode ser simples assim: através das conversas à mesa no jantar ou no comando das colheres de pau. Mas o mais importante é estar entre os nossos para aprender, ensinar ou relembrar os “causos” do passado, os acontecimentos do dia anterior. Aquelas situações que pareciam indissolúveis e tiveram solução. Ou mesmo aquelas histórias bizarras de família que você jamais vai esquecer e recontar com a sua imaginação para os seus filhos. Não importa quanto tempo se passe daquela avó ensinando uma neta a lavar roupa, as memórias e experiências de toda uma vida ainda podem mudar o mundo, ou o pequeno mundo que construímos à nossa volta.
Silvana Texto @silvanaespiritosanto (foto arquivo pessoal)
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