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Para disfarçar

Tenho uma meia azul marinho e uma verde bandeira. Lindas. De lã, feitas a mão. Isso mesmo, tenho uma meia azul e uma verde, não pares. Eram pares, mas o tempo, não me perguntem o motivo, se encarregou de desfazer os pontos do tricô e parte de uma se foi igual a outra parte da outra, uma de cada pé. Assim, sobraram duas meias, um par, de cores diferentes, pois não tive coragem de jogá-las no lixo quando arrumei coragem para me desfazer delas. Não foi presente de ninguém, ou compradas num momento especial, mas adoro elas.
Hoje visto meias de lã, de tricô, de cores diferentes e, diferentes na trama de quem as fez. Olho para as minhas meias velhas e penso no motivo de não tê-las jogados no lixo, o motivo de tê-las buscado na caixa de meias, o motivo de me sentir tão confortável com pares tão díspares. A do pé esquerdo, a azul, já se mostra mais desgastada e com uma aparência não tão boa como a do pé direito, a verde bandeira. As duas estão cheias de bolinhas do tempo e, mesmo com aquele papa bolinhas abandonado no armário do banheiro, nunca quis tirar as marcas do tempo das minhas velhas e reconhecidas meias.
Nunca usei na presença de estranhos, ou próximos recentes. Uma pessoa normal jogaria fora o estranho par que se formou? Fico a pensar na questão e fico a pensar na sentença que pode ser querer algo que destoa, que não combina, mas que traz um prazer imenso.
Sei que em algum momento vou parar de usar o par azul-verde, sei que uma hora vou ter que me livrar do que sobrou e, nem sempre o que sobrou é o melhor e, por isso, vou ter que abandoná-las. Depois, talvez lembrar das passadas pela casa, das vezes que as busquei cegamente na madrugada quando fugiam embaixo das cobertas, das vezes que me aqueceram, das vezes que olhei para elas com estranhamento e me permiti vesti-las.
Talvez eu me desfaça delas, talvez num inverno qualquer, após o outono, ou talvez arrumando a caixa de meias no verão, talvez vislumbre no meio da rua, numa vitrine um par novo e queira dar uma chance ao novo na minha caixa de meias. Enquanto não acontece, vou vestindo as meias que não combinam para me aquecer, em casa, sozinha, no outono.

Domingo, 24 de maio, 2009
Foto: Silvana Cardoso | RJ, Recreio, 2009

Opaco

As vezes olho em volta e está tudo em preto e branco. Procuro buscar o colorido que nem sempre encontro, mas queria saber pintar, desenhar e colorir. Acho que pintaria paisagens de outono, todas seriam outono. Acho também que nos dias de desassossego eu pintaria abstrato, para não lembrar do movimento interno que me levou a imagens tão desbotadas e sem contexto.

Pintaria a lua nova e aceitaria a ajuda de um binóculo para ver mais de perto, pois as vezes preciso muito ver as coisas mais de perto. As vezes penso no quanto é difícil acreditar naquilo que não estamos vendo, ali, a olhos nus.

Queria saber pintar os sentimentos amigos, os companheiros e amados, falados ou não. Queria que hoje fosse outono para pintar o vento fresco que estaria entrando pela porta da varanda. Adoraria oferecer ele para amenizar as dores, dúvidas e angústias. Pena não poder. Temos o tempo como aliado do que nos é melhor e se agora o melhor é ter primavera, vamos viver a primavera e vamos comprar flores e vamos encontrar o amarelo suave do por do sol usando vestidos leves, sandálias frescas, cabelos molhados.

Não temos o dom de saber adiante, mas se prestarmos atenção podemos amenizar as nossas dores, pois acho que lá no fundo vamos fazendo e vamos sabendo, passo-a-passo, onde vamos chegar.

Acreditar é o mais difícil exercício da vida. Pegar aquela página em branco que recebemos no primeiro choro, no exato momento quando um ilustre desconhecido nos concede um tapa na bunda para nos garantir que é preciso chorar para respirar, e escrever. Mas é preciso respirar para não chorar depois.

Respire, respire, respire, faça o exercício! Sentenciam os terapeutas da loucura diária dos nossos dias loucos. E vida que segue para escrevermos essa tal página, as vezes meio rasurada, meio amassada, meio gasta, mas sendo escrita. E não adianta colar, já que cada um tem a sua e não vai mudar nada se colar, só vai atrasar um pouco a escrita.

Mas se hoje eu tivesse um estojo de guache, aquele que se dissolve com umas gotinhas de chuva, pintaria em guache, bem clarinho e deixaria a chuva molhar e aproveitaria o que ficou, o que não escorreu, para continuar do ponto que parei. Faria isso por várias vezes, para nunca terminar de pintar. Assim, quem sabe o outono ficaria para sempre outono.

 

Rio, 26 de novembro, 2009
Foto: Silvana Cardoso