Carta para Miriam | Sim à Igualdade Racial

Sábado, 27 de janeiro de 2007, meio-dia, sala de embarque do Aeroporto Santos Dummont, Rio de Janeiro, Brasil. Foi neste cenário cosmopolita e data contemporânea, em um fim de semana de sol, que vivenciei uma cena que poderia ter ocorrido numa estação ferroviária no século XIX, quando os passos leves e silenciosos de uma senhorinha me chamaram atenção, com a certeza de que a vestimenta branca não era de um profissional da área de saúde. Tinha perto dos setenta anos, cabelos grisalhos, quase brancos, amarrados num coque baixo. A pequena cabeça estava adornada por uma faixa da mesma cor da sua roupa. As perninhas magras e um pouco arcadas lhe davam um ar frágil, mas ao mesmo tempo firme.
Pisava em silêncio e caminhava atrás de um veloz menino de cachinhos loiros, de uns quatro anos de idade. Mais à frente, uma moça altiva e muito branca, com idade próxima de trinta anos, também caminhava. Buscavam alguma coisa ou alguma informação entre as cadeiras, pessoas comuns dentro do aeroporto. A cena que foi se desencadeando na minha frente e me sugou – a senhorinha negra e miúda estava ali: era a babá, a mucama do pequeno veloz. Provavelmente herança da mãe daquela moça branca que caminhava com ela pela sala do aeroporto num fim de semana de sol.
Olhei bem para o seu rosto e fiquei imaginando os filhos que aquela senhorinha não teve, mas quantos ela embalou, amamentou/alimentou e cuidou no seio daquela família. Sua imagem serena, sem expressão de angústia ou descontentamento, me mostrava uma vida inteira conformada com a sua condição de “escrava de estimação”. Pensei que seus olhos pequenos e já cansados viram muita gente partir, mas não da sua família; suas mãos duras e firmes lavaram muita roupa, fizeram muitos bolos, doces e carinhos, mas não entre os seus. Ela caminhava, em silêncio, atrás daquele menino. Depois, sentou ao seu lado e, com carinho de quem cuida, arrumou sua roupinha, ajustou o cadarço dos seus sapatos e ali ficou, quieta, ao lado do seu sinhozinho.
A emoção da cena me levou às lágrimas, ali sentada, vendo pessoas comuns no aeroporto. Lembrei de você imediatamente, minha amiga. Lembrei do meu filho, descendente de negros e índios, que aos nove anos ganhou o apelido de Chocolate na escola. Pensei em muitas situações que vivi com minha comadre, também negra, que me ajudou a dar conta de ser mãe e profissional. Fiquei ali na mea-culpa por um dia também ser parte da estatística de empregar pessoas negras, mesmo que ela fosse minha comadre, mesmo que ela tenha estudado, mesmo que eu não a tratasse com diferenças.
A diferença existe e ainda haverá muita culpa para se carregar neste mundão afora. Sabemos que o preconceito ainda mora ao lado, que a falta de oportunidades ainda é gritante, que a miséria ronda o nosso povo e ainda temos muitas mucamas e sinhozinhos espalhados pelo Brasil.
E agorinha, dez anos após aquela cena no aeroporto, li há pouco o relato de uma amiga branca e descendente de japoneses, residente nos Estados Unidos. Estava emocionada como eu naquele dia, revoltada como eu naquele dia. Comentava o diálogo que havia tido com um rapaz negro, dentro de um supermercado americano. Agradecia a ela por ter falado com ele naturalmente, como uma pessoa comum, já que por ali todas as pessoas o enxergavam como um pária, um indigente, quase um marginal. Século XXI, junho de 2017. Alô, mundo! Alô, mundo! Eu te pergunto: por mais quanto tempo vamos carregar essa herança maldita da escravidão, da diferença entre os povos?
Por isso te escrevo, para pedir que você mantenha viva a sua coragem de mulher negra. E não desista, minha querida Mi, estamos juntas. Um beijo imenso. Silvana

Foto de Silvana Cardoso: a amizade de Dindi e Tonha, abril 2017

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