Após uma mudança de endereço, há exatos dez anos, revirei as emoções e escrevi este texto, já que encaixotar lembranças e histórias pode parecer muito dolorido, mas tirar das caixas o que realmente importou levar ah, isso é maravilhoso sentir. Segue o texto:
Conheço pouca gente que morou na mesma casa por toda a vida e até minha avó se mudou após 40 anos no mesmo endereço. Quem nunca passou pela saga de empacotar suas histórias daquele lugar onde se viveu? Comigo foram apenas duas mudanças de endereço e da última vez a situação revirou as minhas lembranças.
É claro que mudei da nossa-casa-da-vovó quando casei, ainda muito jovem, mas foi diferente, já que naquele momento era a minha vida que estava de mudança. No dia do casamento a imagem que ficou foi a despedida da minha avó no portão, mulher de poucas lágrimas que neste dia chorou ao me abraçar e dizer que ia sentir falta da minha correria pela casa, me desejou felicidades, que estava lá para quando eu quisesse voltar (com minha mãe, um primo-irmão, meu tio mais novo e sua mulher, minha tia querida e minha cadela Kessi, que ficou sob os cuidados do Tio). Duas décadas se passaram daquela despedida e um belo dia minha Tia liga para dizer que “vendemos a nossa casa” e vamos mudar.
Choque número um: como arrumar ou desarrumar uma casa grande que acumulou coisas por 40 anos; choque número dois: preciso comprar uma casa nova para a minha mãe; choque número três: sobrou pra mim, filha-neta-da-casa, ajudar na confusão.
E lá fui eu por semanas seguidas ajudar a organizar a mudança. Nada simples, mas vencemos até as caixas do sótão com as coisas alheias a serem devolvidas, a coleção de vidros e garrafas da vovó, as lembranças e cacarecos do meu pai. E assim fomos embora da casa da minha infância e adolescência e assim sobrou para mim levar as muitas caixas na véspera e o cachorro no dia D. Foi, fomos e sobrevivemos. Doa a quem doer as lembranças estavam ali e sobraram as boas de uma época inocente da minha vida, mas a casa se foi. Demoliram para a construção de um prédio.
Animada com a empreitada, resolvi colocar a minha casa à venda. E daí ter palavras ou termos para explicar o que aconteceu seria mero blá-blá-blá, já que esta casa foi o meu lar, onde construi minha vida adulta e criei meu filho. Comprei o imóvel recém casada, ainda uma quase adolescente de 20 anos, com a tarefa de pagar o imóvel por mais vinte.
Casa vendida, e foi ao arrumar a desarrumação que descobri que parecia a nossa-casa-da-vovó: quanta coisa que eu não via há tempos; outras achadas nos armários da lavanderia; no sótão estava parte da mudança da minha ex-sogra. Não dava para levar tudo e sobrou muita coisa. Fiquei por quase um mês enchendo caixas, vendo onde morar e me despedindo da minha antiga história naquele endereço. Fiquei cansada, muito cansada. Também doeu bem mais que desfazer da nossa-casa-da-vovó, já que ali estava a minha história como mãe-mulher, a minha casinha fofa onde meu filho brincava solto e livre do perigo. Os vizinhos que viveram de perto a minha separação e atenderam aos meus pedidos de ajuda, quando precisava do marido alheio quando o chuveiro queimava a resistência, ou mesmo quando o carro não pegava na hora H de levar Diego para a escola naquela chuvinha das seis e meia da manhã, ou com quem deixar o filho-órfão no fim de semana de trabalho. Ennquanto empacotava as minhas lembranças percebi que todos foram meus heróis.
Poucas horas anates do caminhão encostar no portão “de casa” parecíamos vítimas de uma enchente. Naquele momento me senti sem rumo, sem prumo, cão sem dono. Eu e Diego tivemos uma crise de choro naquela madrugada, nos abraçamos, dormimos juntos no quarto dele. Poucas horas depois não deu tempo de nada e fomos embora daquela casinha que tanto amamos e fomos amados. Foi no dia 11 de setembro de 2007.
Mudanças exigem, acima de tudo, coragem e fé de que vamos dar conta. Sempre falamos em mudar a vida, dar uma mudada, mudar os ares, mudar os problemas e mudar e mudar, mas cansa, e muito. Fiquei esgotada – fisicamente-mentalmente-emocionalmente. Achei que não sobreviveria um mês para contar a história, mas o ser humano sobrevive, somos inventores de nós mesmos, mudamos as peles e vamos em frente. Damos conta, sempre.
Estamos bem na casa nova, construindo novas amizades, ouvindo pássaros cantar, pertinho do mar. Os rapazes, JB e Cisco, passeiam e batizam todas as árvores do bairro novo. Valeu ter coragem para revirar os sentimentos e fechar as caixas.
Encaixotar lembranças e histórias pode parecer muito dolorido, mas tirar das caixas o que realmente importou levar, ah, isso é maravilhoso sentir.
janeiro, 2008
Foto: Silvana Cardoso