Viagem e desapego

Imagina uma pessoa que tem a chave da mala no chaveiro do carro. Imaginou? Pois bem, há um ano e meio abri mão do que era “meu” para ir em busca do que é imenso dentro de mim – a vontade de experimentar outros conhecimentos, outros lugares, outras aventuras, outras pessoas. E a chave da mala no chaveiro simbolizava este acordo e compromisso comigo mesma. A essa altura, o melhor é desapegar para dar conta do impulso que nos faz olhar para frente. E é preciso abrir mão de algumas coisas para isso.

Desapegar é a grande viagem, que já começa quando abrimos mão e não só quando bilhetamos a passagem. É saber que o filho já é um homem, profissional e dono do próprio nariz, que é também o Diego da Carol e não o “meu filho”, que a casa já está alugada e não mais é a “minha casa”, que boa parte dos “meus livros e CDs” foram para outras pessoas, assim como roupas, sofás, armários, mesas e cadeiras. E quando visito a amiga Miriam ou a comadre Susana e me deparo com um pote, um copo ou uma xícara, fico feliz por estar usando as coisas que foram, algum dia, “minhas coisas”.

Com alguma disciplina, consegui trabalhar bastante, cuidar da saúde e planejar uma viagem. Me inscrevi, de súbito, num curso de férias de Espanhol com professores refugiados (para melhorar o portanhol). Um intensivo de 44 horas em quatro semanas, que em alguns momentos quase desisti – tamanha pressão de trabalho, somado com a pressão das aulas à noite. Dar conta do cansaço e dos pronomes, preposições e verbos em espanhol foi um desafio imenso para quem não estudava há três décadas. Voltei a ter uma turma e foi acolhedor aprender com todos eles. Além de muito divertido. Para me manter firme e não desanimar, olhava na tela do computador a passagem bilhetada que dizia: Montevideo, 10 de março. Olhava mais uma vez para a chave, que me enchia de coragem.

Isso mesmo, escrevo de Montevideo e vou ficar uns bons dias por aqui. Cheguei num “dia precioso”, como disse o motorista do Uber, dia de sol lindo, sem atraso, com uma mala pequena e o peito aberto. E já posso contabilizar, nos dois primeiros dias: as andanças do aeroporto até a casa da amiga que me acolhe; os bracinhos esticados de Mimi (filha de dois anos da amiga) que veio em minha direção e assim ganhei um abraço; as palavras de Vinícius de Moraes na porta do quarto; dos vinhos na acolhedora reunião da chegada; do shopping para trocar dinheiro; do supermercado; do ônibus errado; da faixa na entrada da Universidad de la República Uruguay, que bradava “IGUALDAD – 8 DE MARZO”; da feira Tristan Navaja.

A loucura da imensa feira de uns cinco quarteirões me encheu a alma. Acontece aos domingos, uma mistura de feira de Acari (do subúrbio do Rio) com Benedito Calixto (em SP), com a feira livre em frente a casa da Tia, em Jacarepaguá. E todos aqueles sabores e todas aquelas quinquilharias e aquele montão de gente andando num domingo qualquer, num lugar onde meus ouvidos já estão livres.

Segui o som de uns tambores e descobri que eles também andavam entre as barracas e desviavam das quinquilharias espalhadas pelo chão, numa alegria geral de quem recebia os músicos. Passavam os bonés para receberem os donativos pela exaltação ao Candombe de Ruben Rada. O ritmo e a força da música me levaram de volta ao Seu João, que tocou para mim o tambor de crioula dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Alcântara, no Maranhão.

Já bem cansada de tanto andar, fiquei sentada num banco por um tempo, comi umas empanadas e me deixei levar por aquela solidão gostosa de estar longe e ao mesmo tempo tão perto de todos que amo. Vi a faixa que pede igualdade para as mulheres e pensei: o melhor lugar para estar será sempre aquele onde o nosso coração está em paz.

 

Montevideo, 13 de março, 2017
Foto: Silvana Cardoso

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